sorry folks: u forgot tha say 'please'
voltaremos quando vos for mais inconveniente

reflexões

Partilhávamos atrás as nossas notas sobre uma peça que se interroga da natureza dos comics. Pergunta-se nesta "o que é banda desenhada?". No processo, porque alguns autores abandonam o meio desencantados com o formato, transversal ao sentido do texto a importância da auto-expressão, à sua conclusão um cite comentado:

You’re focusing on form and style and canon, I guess, but a variable that feels missing to me is identity.

Hoje sentimo-nos impelidos a ir mais além nessa interpelação ao meio: tão ou mais pertinente à sua definição acresce-nos outra dúvida existencial que a precede: porquê banda desenhada?


I


Esta semana faleceu um reconhecido autor de BD contemporânea nacional. Não podemos neste espaço discutir a pessoa ou a sua obra: nunca o conhecemos, e apesar de informados dos seus trabalhos quis o acaso que a sua cronologia não coincidisse com os nossos anos formativos ao meio. Iniciou a sua produção em finais de ‘70, o seu período mais fecundo ocorre nos anos 80, quando poderia ter tido toda a nossa atenção na transição dos ‘90 ao novo século ausenta-se do país para só regressar no final da década. A nossa desculpa, da exposição em retrospetiva:

E, como quem não aparece, esquece, o nome de Fernando Relvas foi gradualmente caindo no esquecimento.
in "Fernando Relvas em Retrospectiva" 27 out 2017

Da pessoa supomos alguém tão humano como qualquer outro: deixemos a esses a escrita dos obituários que se exigem e mais justiça lhe façam. Da bd, segue-se a nossa contribuição para o adiar do esquecimento a que todos estamos condenados, e no processo tentar a resposta à nossa questão.

Não sendo a BD nem comunidade ou género, nada mais que um mero meio, nada nos liga a Fernando Relvas ainda que o seu percurso não nos seja estranho: trabalhou animação, temáticas punk, pranchas cartoon cruzado à imprensa, personagens recorrentes, hiatos fantásticos introduzidos quase ilogicamente a sequestrar narrativas, sem receio de abraçar o digital -webcomics, print-on-demand, edições em CD-Rom-, quem o leu ou conheceu diz-nos que no seu melhor retrata "o ambiente suburbano de Lisboa" com excecional competência.

Amante da noite lisboeta, retratou-a como ninguém em histórias que espelhavam uma certa marginalidade, a irreverência, o experimentalismo e a sede de liberdade que se viviam nos anos 80 em Portugal.
in "Morreu o desenhador e autor de banda desenhada Fernando Relvas" 21 nov 2017

Esta sensação de grande realismo, alicerçada em diálogos extremamente coloquiais e credíveis, é sintomática de uma grande sintonia com a realidade quotidiana, até então praticamente inexistente em termos da banda desenhada portuguesa.
in "Fernando Relvas em Retrospectiva" 27 out 2017

Pesem as referências entre nós, o seu melhor não transitou ao digital e a ilustração de caricaturas punks não retornaram com o seu regresso: por alturas da reedição do "Violeta" não nos conseguimos entusiasmar e a única nota que alguma fez lhe fizemos neste espaço enunciava essa expectativa frustrada com o caminho que trilhava: "esta é uma conversa difícil que alguém vai ter que ter."

São escolhas debatíeis pelos critérios de que se socorram, algumas afirmações serão mais difíceis de precisar mas entram a registo –

Um dos melhores desenhadores portugueses de sempre, que efectivamente é
in "Fernando Relvas em Retrospectiva" 27 out 2017

- outras mais autoritárias perante factos, como a indesmentível prolificidade da sua carreira. É dessa que vos convidamos a uma reflexão maior.


II


Identidade. Encontramo-la em Fernando Relvas? A sua obra é rica em formatos, estilos e cânones: estes últimos ajudou a definir, estilos e formatos trabalhou tantos quantos podemos querer à realidade nacional. Mas, talvez pela abundância de temas e técnicas, temos dificuldades em indicar uma.

Fernando Relvas, que nos últimos anos tinha trocado o desenho em papel pelo digital, não só nunca se fixou em técnicas e materiais específicos, como não é fácil reconhecer uma linha estilística muito nítida na extrema variedade das obras que nos deixou ao longo de uma carreira de quatro décadas.
in "Fernando Relvas (1954-2017): o talentoso boémio da BD portuguesa" 21 nov 2017

Essa mesma fluidez torna penosa a celebração do autor: dizem-nos que o fazemos ao lê-los, mas o que ler em Relvas? A sua adaptação de Viagem ao Centro da Terra, "claramente de encomenda, sobre o qual o autor não quer nem ouvir falar" ? Rainha Ginga, "prometia ser um dos seus melhores trabalhos de sempre", não publicado? O Rei dos Búzios, "em termos gráficos e sobretudo cromáticos (...) é do melhor Relvas de sempre", mas nunca concluído? Particulamente, quando o apreciamos especialmente no p/b? Espião Acácio, interrompido com "elementos de ficção científica perfeitamente estranhos à história que lhe retiraram todo o sentido e piada apesar do próprio considerar estes últimos episódios como os seus preferidos"? Citamos da mesma retrospectiva anterior, na qual podem acompanhar a miríade de tendências em que o autor se ocupava e na qual não descortinamos linha condutora excepto onde lhe apontam "exemplo(s) típico(s) da forma como Relvas por vezes se dispersa". Talvez essa tipicidade seja a única identidade que lhe podemos aspirar. Talvez "o talentoso boémio da BD portuguesa" se revele entre as suas peças quando essas se desviam do guião que lhes devota. 

O seu inconformismo, reconhece, também o levava a impacientar-se com alguma facilidade: "Cansava-se um bocado das histórias e começava a divagar, o que funcionava bem na imprensa, mas às vezes se nota quando as histórias são recolhidas em álbum."
in "Fernando Relvas (1954-2017): o talentoso boémio da BD portuguesa" 21 nov 2017

Nesse ponto estamos tentados a concordar com a sugestão feita por um certo crítico que arrisca "afirmar que Relvas estava menos preocupado em ‘contar histórias’ do que dar corpo à sua necessidade de expressar o desenho, (...) e de se aproximar, numa qualquer ideia de comunidade, ao leitor e leitora", quiçá por hábitos adquiridos à data da sua temporada mais pujante que passa na imprensa:

Ao sabor das circunstâncias e da própria actualidade, acompanhando o ritmo semanal da produção (...) tudo isto à mistura com alguns copos e boémia q.b., que o Relvas nunca foi de deixar para amanhã o que pode viver hoje.
in "Fernando Relvas (1954-2017): o talentoso boémio da BD portuguesa" 21 nov 2017

Aproximamo-nos assim de reconhecer a identidade do autor nas suas obras? A nossa suposição. E a podermos assevera-lo positivamente conseguimos igualmente a nossa resposta à pergunta: porque desenhava Relvas? À superfície, algumas vezes pelas razões comezinhas de sempre, mas o seu desapontamento com "as regras do jogo" de editoras estrangeiras em mercados profissionais são-nos indício de uma vontade em privilegiar o gesto expressivo, "liberto (...) do espartilho da história em 44 páginas, tão característico da BD franco-belga", que novamente nos devolve à essência dos comics como os entendemos.

Infelizmente, apenas o podemos supor porque não o é evidente na sua obra à razão das suas  peças pós-milénio.


III


A introspecção é uma fatalidade de circunstâncias fúnebres, pedimos aos nossos cómicos que nos acompanhem nesse exercício: poderá parecer que nos dispersamos mas confiem que adiante cumpre os seus propósitos.

Quando falávamos de filósofos gregos? Um sumário possível por Nigel Warburton em "Grandes Livros de Filosofia" .

Eudaimonia não pode servir qualquer outro objetivo: é o lugar onde este tipo de cadeia de justificações encontra o seu fim.

Eudaimonia: uma vida feliz

Eudaimonia é frequentemente traduzido como «felicidade», mas tal opção pode revelar-se muito enganadora. É por vezes também traduzido como «florescimento», termo que, embora algo estranho, tem conotações mais apropriadas, sugerindo, por exemplo, a analogia entre o florescimento das plantas e o florescimento dos seres humanos. Aristóteles acredita que todos os indivíduos anseiam por eudaimonia, o que significa que todos os indivíduos querem que as suas vidas corram bem. Uma vida eudaimon é uma vida de sucesso.

Aristóteles afirma que procurar apenas o tipo de rigor apropriado à área em que a pessoa trabalha constitui um sinal de inteligência. Os julgamentos acerca de como viver só são válidos até certo ponto, não podendo ser aplicados a todos os indivíduos em todas as circunstâncias, o que demonstra que não há regras rígidas.

Eudaimonia não significa um estado mental jubiloso. Trata-se, pelo contrário, de uma atividade, de um modo de vida ao qual são inerentes prazeres específicos, mas que não pode ser avaliado em acções particulares. Há que ter em consideração a totalidade da vida de um indivíduo antes de se poder afirmar com segurança que determinada pessoa atingiu eudaimonia e tal como Aristóteles afirmou, de forma memorável, uma andorinha não faz a primavera, nem um dia feliz garante uma vida feliz. Uma tragédia perto do fim da vida de alguém poderia colocar uma ênfase completamente diferente na questão de saber se a vida dessa pessoa no seu todo correu ou não bem. Há, então, alguma verdade na ideia de que não se pode afirmar que a vida de alguém foi eudaimon antes da sua morte. Aristóteles considera mesmo o modo como acontecimentos posteriores à morte do indivíduo podem afetar a avaliação do êxito final da vida da pessoa.

As virtudes e akrasia (debilidade de vontade)

Aristóteles revela-se particularmente interessado na acção e não tanto no comportamento justo.

Para Aristóteles, a palavra traduzida como «virtude», ethikai aretai, significava simplesmente «excelência de carácter», e não continha quaisquer implicações morais, de acordo com a aceção contemporânea de «moral». Ser virtuoso, no sentido que Aristóteles lhe atribui, significa apenas possuir traços de excelência de carácter e agir de acordo com eles. Akrasia refere a situação familiar em que a pessoa sabe o que deve fazer para tornar a vida melhor, mas teimosamente escolhe aquela que sabe ser a pior. O conceito aristotélico enuncia uma acção voluntária (...) vencidos pelo seu apetite e sucumbem à tentação dos prazeres imediatos, em vez de agirem de uma forma que os conduza à prosperidade a longo prazo. Não obstante o facto de saberem até certo ponto o que é bom para eles, não escolhem essa opção por não conseguirem inferir casos particulares do princípio geral.

Podemos discutir ética aristotélica em próxima ocasião, mas -spoiler alert- entre as críticas que se lhe faz contam-se o egoísto e elitismo.

E novamente, finalmente, a pergunta: "porquê BD?"

Para OS POSITIVOS é-nos fácil responder. Quando nos dirigimos para fora, para vos pregar até vos caírem as orelhas: bd como meio de expressão bastante directo. Quando nos dirigimos para dentro e dispensamos público: por razões que não vos dizem respeito (mas um binge-reading da nossa depressão anterior às teses e publicada ao longo de vários meses em moldes quase abstratos é agora francamente mais acessível se lida a eito em dez minutos). Nessas ocasiões a bd é ainda uma forma de expressão, apenas não um meio e sim um fim por si. Introspecção feita.

E, no-va-men-te, aos cómicos que nos leem, devolvemos a pergunta: porquê BD?

No teu obituário a circular entre canais da especialidade: o que vão estes discernir da tua identidade a gerações futuras? Vão sequer encontrar alguma...?

Autenticidade, comics ed, pt2.

Do título: porque tratamos de uma arte visual entendam-no de "reflexo, imagem difusa produzida por luz refletida". E podes reler novamente a imagem no topo da página: nesta parte do mundo faz-se em zig-zag de cima para baixo, esquerda à direita. Cheers.

o monstro e os monstros